Capítulo II
Quando a porta foi aberta diante de Darl, a ofuscante luz do
sol bloqueou a vista que se formava.
O garoto cobriu seus olhos cansados, que pareciam haver sido
mantidos abertos durante toda a noite. Quando os abriu novamente, sua
respiração, já a ponto de tornar-se ofegante pela tensão, parou.
Havia casas. Muitas delas. Paredes e telhados erguiam-se até
onde os olhos podiam alcançar.
Entre elas havia algumas árvores e várias ruas cobertas por
folhas amarelas e vermelhas do outono, ao longo das quais andavam pessoas.
Talvez uma dúzia delas estivessem no campo de visão de Darl. Era um número
muito maior do que o garoto sonharia em ver.
Por quase três luas, estivera dentro de uma casa com janelas
barradas e a porta trancada, sem qualquer contato com a grandiosidade do mundo
além delas. Então, de um instante para o outro, seu escuro horizonte
expandiu-se e brilhou.
Era belo em um momento, e assustador em outro.
— Vem. —, com a frieza de sempre, disse Gundar.
Sem questionar, Darl foi para seu lado. O garoto estava
encapuzado, apesar de ser um dia claro com esparsas nuvens brancas no céu. A
razão não lhe fora explicada, como de costume.
Enquanto caminhava ao lado de Gundar, Darl não pôde evitar
observar seus arredores.
Por eles passavam homens e mulheres que carregavam baldes,
jarros, sacos e outros recipientes, além ferramentas e lenha. Também havia
homens com lanças em mão vestidos com armaduras muito mais completas que a que
Gundar possuía.
Em um momento, um grito estriduloso ecoou de algum lugar por
perto. Assustado, Darl virou para sua direção e avistou um grupo de crianças
que corriam. Uma delas segurava uma galinha que gritava que se sacudia
desesperadamente.
— Olha pra frente. —, Gundar retirou Darl de sua
contemplação. — Tá vendo os homens com lança? São guardas. Não olha pra eles,
principalmente.
Acostumado a ter poucas opções senão abdicar de sua curiosidade,
o garoto contentou-se com suas próprias especulações. Talvez a razão fosse
simples como o fato de os guardas carregarem armas fazer deles especialmente
perigosos.
Pensando bem, Darl não sabia o que exatamente era um guarda.
Tudo que sabia era que seu trabalho era patrulhar as ruas, apesar de ter pouca
certeza sobre o que isso implicava.
Apesar de evitar mover a cabeça, não exatamente mantinha
seus olhos fixos no caminho. Foi assim que uma vista de tirar o fôlego tomou
forma assim que viraram uma esquina.
Sobre os telhados das casas, tão grande que desafiou seu
senso de distância, erguia-se uma colossal construção de madeira. Os olhos de
Darl tentavam entender sua forma exótica, mas falhavam.
Neste momento, ouviu um suspiro de seu lado. Imediatamente,
trancou os olhos no chão, com um pouco de culpa no coração. Pensou em se
desculpar, mas optou por ficar calado.
— Aquilo é o castelo. —, as palavras de Gundar deixaram o
garoto confuso.
Mas a confusão logo deu lugar ao entusiasmo quando Darl
olhou para o soldado, e viu que estava, pela primeira vez, satisfazendo sua
curiosidade.
— É lá que o rei Honir mora, e pra onde todo mundo pode
correr se a cidade for atacada. A casa do rei, na verdade, fica ali dentro,
cercada pela muralha.
Darl sentia apenas fascínio enquanto tentava imaginar o que
havia além dos altos muros de madeira. Se era cercada por muros tão grandes, a
residência da família real faria jus a tal grandiosidade?
— Aquelas coisas altas —, Gundar apontou com o queixo. — são
as torres. Dá pra ver a cidade toda lá de cima.
Os olhos do garoto foram guiados a duas robustas construções
que se alongavam acima dos muros sobre os quais pareciam apoiar-se. Desde o
início, foram elas que capturaram a atenção de Darl.
Sobre o pico de seus levemente pontiagudos telhados, havia
longas hastes nas quais estavam presos tecidos verdes triangulares que
balançavam ao vento. Em cada um deles aparentava estar inscrito um desenho em
tons de marrom e preto.
— Aquilo ali no alto são as bandeiras de Nouwer. Nosso
símbolo é o pardal porque... Bem, Rhaffur vai saber te contar a história. E
depois falo mais das defesas da cidade. Agora olha pra frente porque a gente tá
chegando.
Darl não podia reclamar. Na verdade, nem mesmo queria. Ele
ainda queria saber mais sobre o castelo, mas podia esperar.
Mas talvez não devesse relaxar tanto. Ainda estava nas ruas,
e devia tomar cuidado.
Quando seus olhos finalmente deixaram as torres do castelo,
surpreenderam-se com os guardas de pé à sua frente. Eram dois, um de cada lado
de um portão aberto.
Sob os elmos metálicos, seus olhares caminhavam entre Darl e
Gundar, que parou apenas para assentir para os guardas. Após se entreolharem,
um deles fez um gesto com a cabeça, e o soldado continuou adiante, seguido pelo
garoto.
Enquanto os recém-chegados retomavam seu caminho, os olhos
de ambos os guardas ainda caiam pesadamente sobre Darl. Até mesmo quando as
bordas de seu capuz ocultaram-lhes, o garoto ainda sentia seus olhares sobre
si.
Uma sensação de frio percorreu suas costas, seguido por um
arrepio, enquanto avançava além do portão.
O outro lado apresentou uma vista completamente diferente da
cidade. Com uma grande construção ao fundo — consideravelmente maior que uma
casa, porém menor que o castelo —, havia uma área aberta coberta por pessoas em
atividades diferentes. Dúzias praticavam combate com lanças e arco, outras
carregavam caixas, e uma minoria parecia coordenar os movimentos das demais.
Vozes e sons de armas cobriam o ar de uma forma sufocante.
Se Darl teria que se tornar um soldado, não queria ter que frequentar um local
como esse.
A realidade era que ele jamais fora realmente a favor de
seguir a carreira de Gundar, mas não havia outra escolha. Por mais que boa
parte dos soldados atuassem como guardas na cidade parte do tempo, a ideia de
possivelmente entrar em um campo de batalha era exasperadora.
Antes de seu décimo terceiro inverno, apenas estaria em
treinamento com o soldado que lhe acolhera. As duas luas que estivera em sua
casa aparentavam haver durado uma vida inteira, e a esperança de que o dia da
viagem, de alguma forma, não viria era tudo que podia acalmá-lo.
Por que guerras eram travadas, de toda forma?
Histórias sempre retratavam conflitos entre pessoas ou mesmo
nações, como os Antigos Impérios de Khanlof e Gundord.
Rhaffur dissera algo sobre monarcas desejarem as terras dos
vizinhos, mas eram os soldados que lutaram. Por qual razão eles deviam lutar e
morrer por outra pessoa?
Gundar, seguido por Darl, seguiu seu caminho em linha reta
em direção ao edifício e entrou pela porta da frente já aberta.
O interior era uma grande sala iluminada pelo sol e vários
candeeiros. No centro, havia uma grande mesa, cercada por meia dúzia de homens
de pé. Um deles debruçava sobre ela enquanto falava e movia a mão sobre sua
superfície.
Ao olhar um pouco melhor, era possível identificar uma folha
sobre a mesa tão grande quanto ela. Sua superfície clara estava coberta por
gravuras escuras de diversas formas, mas Darl era incapaz de identificar o que
exatamente eram.
— O capitão ainda tá
ocupado. Vamos sentar ali.
— Hm? —, quando Darl
teve tempo de interpretar as palavras de Gundar, o soldado já caminhava para o
canto da sala. — Ah...!
Juntas à parede, próximas da entrada, estavam quatro
cadeiras. Sobre uma delas assentou-se Gundar. Três estavam livres, uma ao lado
mais espaçoso e duas mais próximas da quina.
Talvez o ideal fosse escolher uma das duas próximas ao
soldado, mas talvez isso pudesse fazer com que ficassem próximos demais. Isso
seria desagradável.
Em contrapartida, sentar-se no lugar mais distante, próximo
à quina, seria perigoso, porque deixaria espaço para algum eventual estranho
tomar o lugar entre os dois. Não havia como saber quanto tempo ficariam lá, e
nem o quão frequentemente alguém devia usar aquelas cadeiras. Essa escolha
seria arriscada.
Contudo, seria uma opção para a eventual terceira pessoa a
cadeira no lado mais distante de Gundar, então haveria apenas metade da chance
de alguém sentar entre os dois. A não ser que fossem duas pessoas também.
Nesse caso, o ideal seria sentar-se no lado do soldado com
apenas uma cadeira livre. Desta forma, se mais uma pessoa aparecesse, poderia
escolher qualquer um dos dois lugares e, se fossem duas pessoas também, ambas
não seriam separadas por um estranho.
Ainda assim, isso significaria que Darl devia tomar o
assento virado para o meio da sala, onde pessoas circulam. Contudo, seria o
local mais arriscado para se sentar.
Seguindo esse raciocínio, a cadeira mais segura seria a mais
próxima da quina, pois tinha a proteção de duas paredes.
Entretanto, um canto como esse seria o local mais propício
para ser encurralado.
E Gundar parecia dizer algo.
Na verdade, apenas sua boca movia-se. Era como se
sussurrasse algo.
"Vem"...? "Sen...ta"...
"logo"...
Darl então se deu conta do fato de que provavelmente esteve
de pé na entrada há tempo demais.
Com pressa, andou logo para frente, sem pensar mais em qual
cadeira escolher. Em meio ao primeiro passo, contudo, notou um movimento a seu
lado, da direção da entrada. Antes de ser capaz de olhar para a pessoa que
vinha, com um som metálico, seus corpos se chocaram.
O garoto cambaleou para o lado até firmar os pés no chão e
ter o equilíbrio recuperado.
Isso era ruim.
Darl havia ficado no caminho de alguém e, quando ia
finalmente se mover, causara ainda mais problemas à pessoa.
Quando se virou de volta, viu um homem em uma cota de malha,
como a que Gundar possuía. Ao levantar os olhos para seu rosto sem barba, viu
uma expressão de surpresa se formar em sua face. Então, as sobrancelhas, que
estavam levantadas, desceram, e a boca, uma vez aberta, lentamente se fechou.
Talvez devesse pedir desculpas, mas, ao observar a expressão
que se enrijecia a cada instante, o garoto foi capaz de fazer nada senão sair
do caminho.
Com passos largos, e sem olhar para o lado, o homem de
armadura seguiu para o centro da sala. Darl pensou ter-lo ouvido fungar, mas
era difícil ter certeza.
Sem esperar mais, o garoto retomou seu caminho em direção às
cadeiras. Sentou-se na mais próxima da quina, mesmo que isso deixasse um espaço
entre ele e Gundar.
Naquele momento, o canto da sala era o melhor lugar que
podia encontrar.
Darl trancou os olhos no chão, ainda com o coração
acelerado. Não podia acreditar no que havia acontecido, nem no que estava para
acontecer.
A qualquer momento, seria apresentado ao capitão da
expedição, e logo teria que partir e trabalhar com outras pessoas. Isso deveria
vir apenas mais de um ano no futuro. Ainda era cedo demais.
Darl não estava preparado.
Seus olhos tornaram-se quentes. A qualquer momento ele podia
chorar. Podia não ser um evento raro, mas em um local como esse...
Não era lugar ou hora para tal. Ainda assim, pouco podia ser
feito.
Então ele mordeu a língua.
Sua visão tornou-se turva, seus olhos úmidos. Não era o
bastante — as lágrimas ainda viriam.
Então ele pôs mais força na mandíbula.
Doía, mas era necessário. Abriu bem os olhos, então os
fechou e apertou as pálpebras.
Ao abrir os olhos novamente, sua visão estava melhor, e
nenhuma lágrima escorria por suas bochechas.
Darl havia conseguido evitar cometer mais um erro pelo dia.
— Pode abaixar o capuz. —, uma familiar voz ao lado disse.
— Hm...? Oh, xim...
—, ainda com a língua latejante, Darl conseguiu responder.
Estava um pouco surpreso pelas primeiras palavras do soldado
não houverem sido de repreensão.
Pensando bem, raramente tal coisa acontecia. Ainda assim,
talvez por sua expressão sempre séria, apesar de viverem juntos há tanto tempo,
Darl esperasse que acontecesse a qualquer momento.
Ele fez como lhe foi dito. No momento em que sua cabeça foi
exposta ao ar; sentiu um leve frio nas pontas das orelhas. Por alguma razão,
sentiu-se ainda mais desprotegido.
Mais uma vez, Darl questionou-se sobre o mundo a sua volta.
Durante o tempo em que estivera na casa de Gundar, podia achar que sabia o
suficiente, mas, quanto mais pensava, mais concluía saber realmente nada.
A primeira pergunta que lhe viera era a razão de precisar
ser apresentado ao capitão. Se não pelo fato de ser novo na cidade, talvez
fosse um procedimento comum a todos na expedição.
Gundar realmente mencionara, em algum momento, algo sobre
soldados serem cadastrados. Desta forma, eles podiam ser contados e tarefas
assignadas a eles de forma organizada.
Se era essa a razão, então não devia haver razão para ter
medo. Provavelmente.
Outra questão era sobre a razão de precisar esconder-se. Já
que a idade era um requisito para servir como soldado, talvez também fosse para
sair de casa, de forma geral. Entretanto, Darl vira crianças por volta de sua
idade — ou algumas até mais novas — a correr pelas ruas da cidade pouco atrás.
Ainda assim, de certa forma, não era como se o garoto
tivesse algo contra. Na verdade, desde que deixara a casa de Gundar momentos
atrás, a cada instante que se passava, a inquietude gritava mais alto que a
curiosidade.
Tudo que queria era retornar para aquela casa, aquela
lareira. Ao lugar que fora seu lar desde o fim do verão.
Quando pensava nisso, ainda se lembrava de seu antigo lar
nos bosques. Lá a vida era menos ociosa, mas era onde vivia sua família — seu
pai e sua mãe.
De toda forma, não era o momento para pensar em coisas do
tipo.
Outra vez não.
— Vem. —, disse Gundar, enquanto se levantava.
Darl precisou mover seu olhar algumas vezes entre o soldado
e a mesa, agora com apenas duas pessoas, antes de ter plena certeza do que
estava havendo.
Antes de provocar mais problemas por pensar demais,
levantou-se também e seguiu Gundar até a mesa.
Enquanto se aproximava, notou que, entre os dois homens à
mesa, enquanto um era completamente estranho, o outro parecia estranhamente
familiar.
— Capitão Mansur. Tenente. —, Gundar, diante de ambos os
homens de armadura, pôs o punho fechado no peito e abaixou a cabeça.
O que aquilo significava Darl não sabia, mas podia deduzir
ser algum tipo de saudação. Chegou a se perguntar se deveria fazer o mesmo, mas
eram as duas pessoas diante do soldado que lhe incomodavam mais.
À esquerda estava um homem que se destacava. Seu cabelo e
barba dourados estavam bem aparados. Sua cota de malha, que protegia toda a
extensão de seus braços, estava coberta por um longo manto branco com um
círculo verde no peito, dentro do qual estava desenhada a cabeça de um pássaro
marrom — o pardal de Nouwer.
Porém, a pessoa que mais lhe intrigava, apesar das
vestimentas mais simples, era o homem à direita. Sua longa armadura de anéis
metálicos estava completamente exposta, diferente do homem a seu lado. Seu
cabelo escuro também era curto, mas seu rosto estava completamente raspado.
Darl conhecia poucas pessoas, ainda assim, não conseguia
encontrar o motivo de achar seu rosto familiar.
— Então é verdade... —, o homem vestido com o manto com o
brasão da cidade levou uma mão ao queixo e acariciou sua barba loira. — Disse
que está com ele há duas luas, soldado?
— Exatamente, Capitão. —, respondeu Gundar, já com a cabeça
erguida, porém com o corpo completamente rígido.
— E ele irá trabalhar com os outros? Devo elogiar sua
coragem. —, o capitão levantou as sobrancelhas.
O homem ao lado meramente cruzou os braços e franziu a
testa. Apenas então Darl compreendeu de quem se tratava.
Aquele era o mesmo homem com quem, pouco tempo atrás,
esbarrara-se na entrada.
— Apenas sigo os ensinamentos do Padrasto, Capitão. —, disse
Gundar. — "A terra molhada é o presente da tempestade".
— E agora que a tempestade se foi, devemos cuidar melhor do
solo que nos foi dado. —, levou o olhar para o garoto. Pôs as mãos na cintura e
lentamente assentiu. Então se virou para o homem em seu lado. — Tenente,
assigne quatro dos homens para vigiar o garoto à distância durante a viagem e
no acampamento.
— Como ordenado, Capitão Mansur.
O tenente, até então de braços cruzados, levou o punho
cerrado ao peito, como Gundar fizera.
— Qual é o seu nome, rapaz? —, o capitão virou-se novamente
a Darl e fez a pergunta.
O tenente, por um momento, inclinou o corpo e abriu a boca
como se fosse dizer algo. Mas nenhuma palavra chegou a ser dita. Em vez disso,
trocou rápidos olhares entre Darl e o capitão.
Não apenas o garoto estava surpreso, aparentemente.
Apesar de estar diante de um homem importante, talvez
justamente devido à pressão, o garoto foi incapaz de responder de imediato.
Seus olhos procuraram ajuda nos de Gundar, que meramente
assentiu. Ainda assim, o sutil gesto foi o suficiente.
— Darldollum... —, respondeu, finalmente, ao se virar de
volta para o apreensivo homem loiro. — senhor... Capitão...?
— Está bem. É tudo que eu queria saber. —, voltou-se
novamente a Gundar. — Dispensado, soldado. Darldollum tem minha permissão para
participar da expedição e servir no acampamento do cerco a Elogrand.
— Muito obrigado, Capitão Mansur.
Mais uma vez, Gundar repetiu o gesto com o punho no peito e
baixou a cabeça. Darl considerou fazer o mesmo, mas quando pensou nos detalhes
do gesto, e no fato de não ter sido instruído a tal, acabou por apenas
brevemente abaixar a cabeça também.
O soldado logo deu as costas a ambos os homens e partiu para
a saída, seguido pelo garoto.
Novamente, Darl não tinha certeza do que exatamente estava
acontecendo. Apesar de não poder ter certeza quanto ao tenente, não sentira
qualquer animosidade por parte do capitão.
— Põe o capuz de novo. —, comandou Gundar, enquanto cruzavam
a porta.
...
Seis dias depois, partiram em viagem.
A campanha caminhava em uma formação com carroças no centro,
cercadas por meia dúzia de escudeiros e, na vanguarda e retaguarda, mais dúzias
de soldados distribuídos. Todos seguiam uma estrada a oeste de Nouwer, a pequena
cidade cercada por muros e torres de madeira, com um castelo no centro.
Embora conversassem entre si, ninguém sequer tentara falar
com Darl. Contudo, era como esperado e, de toda forma, o garoto não via
qualquer razão para falar com os demais. Mas isso não aliviou o desconforto que
sentia.
Os primeiros dias, principalmente, foram especialmente
sufocantes. O garoto sentia-se asfixiado pela multidão; todas aquelas pessoas
que, embora sussurrassem entre si, dirigiam palavra nenhuma a ele — apenas
olhares. Aparentemente, também era o mais jovem ali.
Nos trechos em que a estrada tornava-se mais estreita, sua
situação piorava. A formação apertava, as pessoas aproximavam-se mais. O espaço
que lhe separava dos demais, a única coisa a trazer o menor sentimento de
segurança, desaparecia.
As caminhadas eram longas, apenas com breves pausas. Um dia
causava dor nas pernas no seguinte que, por sua vez, acumulava ainda mais dor
para o próximo.
Darl não podia queixar-se, apesar de tudo. E mesmo se
pudesse, talvez fosse o único ali demonstrando insatisfação. Tinha certeza que,
se perdesse mesmo que um pouco o controle, estaria com a boca aberta, ofegante.
Ainda assim, todos pareciam completamente plenos em comparação. Talvez fossem
muito bons em ocultar o cansaço, ou realmente possuíam muito vigor.
Gundar e Rhaffur estavam em algum lugar da formação, mas o
garoto apenas os via à noite ou quando faziam pausas no meio do dia.
Ainda assim, não fora capaz de fazer a pergunta que tanto
desejava.
O estresse e a fadiga do dia, de toda forma, drenava-lhe
toda e qualquer vontade de questionar.
Ironicamente, chegou a desejar chegar logo a seu destino.
Desta forma, pelo menos, a caminhada cessaria. Mas não devia iludir-se; quando
chegasse a seu destino, talvez o trabalho fosse ainda pior.
Darl não sabia a razão de guerras acontecerem, e muito menos
por que pessoas arriscavam-se por elas. Tudo o que sabia é que devia ajudar,
querendo ou não.
Após um período próximo a uma semana, a viagem chegou ao
fim.
A jornada levou-os a uma área aberta entre as árvores, onde
havia um acampamento. Várias fogueiras estavam acesas, e cinzentas colunas de
fumaça riscavam o céu da tarde.
Logo após a chegada e o descarregamento dos suprimentos, uma
decisão foi tomada: dentre os homens que acabaram de chegar, uma parte devia
permanecer no acampamento, e a outra participar diretamente do cerco. Darl e
Gundar foram assignados como parte do primeiro grupo, já Rhaffur do segundo.
Talvez houvesse até três dúzias de cabanas espalhadas.
Algumas maiores, como a central, que se destacava de todas as demais, e outras
menores, como a de Gundar.
Para todas as direções, escuras florestas podiam ser vistas,
exceto para o sul, onde a vegetação aparentava abrir-se. Ao Norte, se olhasse
por certo ângulo, era possível ver, muito distantes, salientes cumes de
montanhas.
Ao pôr do sol, todos tiveram mais uma refeição antes de se
retirarem para suas cabanas. Enquanto comia, Darl pôde sentir mais e mais
olhares sobre si. Talvez seus sentidos já houvessem cruzado a linha da paranoia.
Não havia razão para receber tanta atenção dos demais. Ainda
assim, sempre que tentava observar os arredores com o canto dos olhos, pensava
encontrar os de outra pessoa.
Apenas quando entrou em sua cabana, sentiu que havia algum
tempo para respirar.
— Amanhã o trabalho vai começar —, disse Gundar, enquanto se
cobria com uma pele de animal. — Você deveria dormir também. Ninguém aqui fica
à toa, e o dia começa cedo.
E então o garoto fez o mesmo. Seu corpo cansado, sua ainda
mente repleta de dúvidas.
Esta poderia ser sua chance.
— Gun... —, tentou dizer, mas desistiu.
Por fim, apenas fechou os olhos e esperou pelo sono.
A partir do dia seguinte, deveria trabalhar com outras
pessoas. O melhor plano que fora capaz de pensar era o de apenas esperar por
ordens, segui-las e, em caso de dúvida, observar como as demais pessoas faziam.
Tivera tempo para se preparar, mas o usara mal. Talvez nem
todo preparo mental pudesse ser suficiente para encarar a realidade, de toda
forma.
Quanto mais pensava sobre, mais desejava sair de lá. Mas
estava a dias de distância de Nouwer, em terras completamente desconhecidas.
Ele devia cooperar e auxiliar uma guerra da qual nada entendia.
Ele queria fugir do acampamento. Seria tolice, mas queria
apenas correr.
A pele sobre a qual estava deitado, o tecido da cabana na
qual estava — tudo parecia sufocá-lo. Assim como as lágrimas que escorriam
contra sua vontade.
Se não fizesse barulho, pelo menos, não seria notado.
Contudo, quanto mais se segurava, com mais força vinham os soluços. Até mesmo
seu próprio corpo parecia querer ir contra sua vontade.
Quando sentiu que viria um que seria incapaz de abafar,
tapou a boca com a mão, mas foi inútil.
Era uma noite silenciosa, o apenas os sons do vento e
fogueiras no lado de fora podiam ser ouvidos. Com certeza seu soluço fora
notado. Gundar estava logo a seu lado.
O soldado devia estar pensando sobre a vergonha que
acolhera. Esteve preparando Darl para ser um soldado, mas tudo que o garoto
fazia era chorar.
Darl enterrou o rosto nas peles em uma tentativa de cessar
suas ondas de soluços. Logo suas lágrimas espalharam-se pela macia superfície,
assim como seu rosto, em contato com ela.
Enquanto, aos poucos, os impulsos incontroláveis
desvaneciam, também vinha a necessidade de respirar novamente. Após erguer o
rosto novamente, respirou fundo. Tentava estabilizar o ritmo da respiração
ainda fora de seu controle.
Embora lágrimas ainda escorressem de seus olhos, ao menos
fora capaz de parar a parte mais problemática.
Ainda assim, era deplorável.
Darl abriu os olhos, com o corpo deitado sobre um lado.
Estava escuro, mas era possível ver o brilho avermelhado sobre o tecido da
tenda vindo das fogueiras acesas no lado de fora.
Elas oscilavam com o tempo, tremeluziam com o passar do
vento.
Os olhos do garoto lentamente se fecharam enquanto o mundo
escurecia.
Sua respiração tornava-se mais suave. Seu corpo mais leve.
O vento uivava enquanto as chamas crepitavam.
Elas crepitavam.
Elas sussurravam.
Mas suas vozes eram muito baixas.
Então o vento se calou, e as palavras das chamas tornaram-se
claras.
— Duwaha Nahuu,
Shierd. —, uma voz ecoou na escuridão. — Waha du Ergwen u dai Vord.
No mundo frio que se formava, a voz era a única fonte de
aconchego presente. Mas também carregava poder, fazia o garoto sentir-se
pequeno e fraco.
Darl procurava por ela, como se necessitasse de sua ajuda
para sobreviver em meio ao caos.
Mas não havia caos, apenas escuridão.
E a voz.
Ele estava de joelhos. Nada via, porém, podia sentir sob si
um chão mais liso que qualquer pedra, e muito frio.
Com as forças que ainda possuía, o garoto pôs-se de pé e
andou em direção à voz.
— Zum enai dai Hoor,
zum em Hoorv dai Ergwen.
Era impossível distinguir o significado das palavras, mas,
de alguma forma, soavam como um alerta.
Era como se um perigo estivesse a se aproximar.
Era como se estivesse sendo seguido.
E a fonte da voz era seu único abrigo.
Então Darl sentiu seus braços juntarem-se ao corpo, como se
estivessem sendo apertados. Tentou movê-los, mas era inútil. Depois sentiu o
mesmo em suas costas. Tentou dizer algo, gritar, mas não conseguia.
Com o corpo paralisado, sentiu algo tocar seu rosto.
Balançou a cabeça para afastar seja lá o que havia.
Algo gelado cobriu sua face.
Era sufocante, o ar que passava por suas narinas não era
mais suficiente. Apenas quando respirou funda e desesperadamente, abriu os
olhos. Diante de si, viu cinco pessoas em meio a árvores.
Água pingava de seu cabelo, rosto, e podia sentir suas
roupas encharcadas. Estava frio, muito frio. Seu corpo tremia
descontroladamente.
— Veja se não acordou! —, um dos homens disse. Ele tinha em
mãos uma vara, a qual balançava pelo ar.
— Dormiu bem? —, disse outro, sua voz repleta de sarcasmo.
Este segurava um balde.
Outra vez, Darl tentou inutilmente se mover. Apenas então
olhou para cima. Estava escuro, mas podia ver os galhos e folhas da árvore à
qual seu corpo estava amarrado.
Perguntava consigo o que estava havendo, por que estava
acontecendo e quem eram aquelas pessoas.
Não podia controlar sua respiração frenética, não podia
controlar o medo.
Só podia concluir que aquilo era nada bom, e estava prestes
a piorar.
Era noite. A única fonte de luz visível era a das tochas
carregadas por outros dois homens mais distantes.
— Não se preocupe. —, declarou outro. Este mantinha uma
distância maior, e estava com a mão sobre o cabo de uma espada embainhada em
sua cintura. — Logo você vai dormir pela eternidade!
Darl gritava, mas sua boca estava amordaçada.
Berrava ao topo de sua força, a ponto de sua garganta doer,
mas apenas dons abafados escapavam.
— A justiça vai ser feita! —, um dos que segurava uma tocha
gritou. Seu tom era exasperado. — Você vai sofrer como a gente teve que sofrer
por sua causa, sua aberração!
Como eles sofreram? O que Darl tinha a ver com isso, de toda
forma?
Muitas questões corriam pela mente do garoto. Ele
contorcia-se, fazia toda a força que podia, mas as cordas nada se moviam. Suas
mãos podiam alcançar nada.
Pensou em pedir ajuda ao Padrasto Yahlov, que deveria sempre
ensinar à humanidade a ser justa. Mas aqueles homens pareciam desejar seu
próprio tipo de justiça. O que o garoto poderia ter feito para ser punido?
Havia relação com a razão de Gundar tentar protegê-lo?
Eles sabiam de seu crime?
Onde poderia estar Gundar, de toda forma? Ainda dormia?
Havia sido morto?
— Ei! Relaxa! —, disse o outro homem com uma tocha, e tocou
o ombro do companheiro. — Ele é o último em uns dez anos. Os outros demônios já
foram purgados. Os que sobraram já estão muito longe de nós.
— Presta atenção! —, chamou o que segurava o galho,
virando-se para trás, onde estavam os outros. — Esse aqui é bem novo. Deve ter
nascido depois que o sacerdote de Alkerfell nos disse a verdade.
— Não era de Phastrion, Tenente? —, indagou o da espada.
— Não importa. Os dois estão juntos nessa.
— Mas eles não desfizeram a aliança faz uns cin...
— Cala a boca! Não é porque meu cargo corre risco que podem
ficar me desrespeitando. Estamos fazendo isso contra a ordem do capitão, mas
isso é, na verdade, um favor a ele. E ao reino!
— Perdão... Tenente.
— Veja, o que quero dizer é que essa criança... essa coisa.
Ela tem uma família. Ou tinha. O que importa é que, se ele nasceu por aqui,
outros também devem estar nascendo.
— Aposto que estão escondidos nas florestas. —, adicionou o
do balde. — Como um bando de goblins!
— Isso! Devíamos voltar a caçá-los. Ficamos nos matando na
fronteira com Elogrand, com o verdadeiro inimigo embaixo dos nossos narizes!
Neste momento, o tenente furioso, que segurava o pedaço de
madeira, virou-se rapidamente e desferiu um golpe contra o rosto do garoto
cujos olhos podiam apenas derramar inconsoláveis lágrimas.
No início houve apenas um estalo, mas logo sua bochecha
começou a arder. Um pouco de sangue parecia escorrer enquanto Darl sacudia a
cabeça, aterrorizado.
— Por que não espalha suas doenças no Abismo?! —, o tenente
gritou, e atacou novamente.
Então outra vez.
E outra.
O garoto já não sabia se balançava a cabeça por conta
própria ou se era resultado dos golpes que recebia.
— Ei, ei! —, chamou um dos homens. Quando os ataques
cessaram, Darl abriu os olhos e notou ser um da dupla com tochas. — Como você
mesmo disse... Tenente, ele deve ter nascido depois daquilo tudo. Não é como se
estivesse com os outros. Ele provavelmente nem...
— Você tá defendendo essa coisa? —, virou-se novamente para
trás. — Hein?! Termina o que começou a falar!
— Não me olhe como um traidor! Minha irmã morreu com a Praga
antes mesmo de se casar. Se estivesse viva ainda, eu teria vários sobrinhos! E
ela não foi a única na minha família... —, baixou a cabeça assim como a voz. —
Todos nós sofremos, Tenente.
— E ele vai sofrer também. —, completou o homem da espada.
Sua voz era o retrato da serenidade e indiferença. — Considere isso um favor.
"A justiça que não for feita em vida, será em morte", não é? Mesmo
que esse garoto seja inocente, vamos fazer um favor a ele antes que viva para
cometer um crime, como os outros.
— Gosto do seu pensamento, soldado. —, concordou o tenente.
— Nesse caso —, voltou a falar o da tocha. —, me dê a sua
espada.
— O quê? —, o homem armado deu um passo para trás.
— Vamos acabar com ele logo. Não sei quanto a vocês, mas tô
cansado de mortes lentas.
— Mas eu não! —, gritou novamente o tenente, com a vara.
Ele andou em direção ao garoto amarrado, pôs a mão sobre sua
cabeça e puxou seu cabelo com força.
Com os olhos semiabertos devido à dor, Darl foi capaz de
reconhecer o rosto do homem diante de si: era o mesmo tenente que havia visto
ainda em Nouwer, no encontro com o capitão.
— Essa é a marca da culpa! —, declarou. — Ninguém que tiver
esse cabelo é inocente! Enquanto eu ver esse maldito cabelo cor-de-fogo,
enquanto eu souber que ainda há mais deles por aí, eu nunca vou cansar de
mortes lentas, porque elas ainda vão tar acontecendo em algum lugar!
— Eu entendo, Tenente, mas...
— Nem mais uma palavra, traidor!
— E-Ei! —, chamou o outro homem da tocha, que se mantivera
calado a maior parte do tempo. — Não vamos esquecer quem é o inimigo aqui!
— Sim... —, soltou o cabelo de Darl e largou o galho no
chão.
Ele afastou-se do garoto e caminhou em silêncio até o
companheiro armado. Nada disseram um ao outro; apenas trocaram sinais com a
cabeça.
O homem da espada entregou-lhe sua arma. Os demais
mantiveram-se calados.
— Vamos ter um dia longo amanhã. —, disse, finalmente, o
tenente agora armado com a espada, enquanto se aproximava do garoto amarrado. —
Vou acabar logo com isso e espero não tocar no assunto de novo.
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