Capítulo I


  — Quando eu sair —, Gundar disse, com a mesma séria expressão que mantivera todos os dias. —, bloqueie a porta com uma cadeira, como eu ensinei.

Após dar a notícia de que deveria partir para uma caçada com outros soldados e caçadores, esteve passando longas instruções a Darl sobre como agir em sua ausência.

  — Aquela janela leva aos fundos. —, o soldado continuou, enquanto apontava para a única janela da casa que não havia bloqueado com tábuas. — Ela é sua única rota de fuga.

Ela levava a uma pequena área cercada por peças de madeira, isolada do exterior. A não ser que alguém pisasse sobre um apoio, não poderia ver por cima dela.

Era lá que ficava o poço, a latrina, e também onde Gundar ensinara ao garoto os básicos de espada com escudo e arco e flecha. Aparentemente, as armas mais comuns no campo de batalha eram lanças, mas não eram a melhor opção em autodefesa.

Ainda assim, se Darl deveria tornar-se um soldado no futuro, aprender a usar a lança parecia uma opção tão razoável quanto as outras.

  — Quando eu voltar, vou bater na porta quatro vezes e depois seis vezes, e repetir até você abrir. —, na mesa ao lado, simulou as batidas com os nós dos dedos. — Mesmo que alguém com uma voz parecida com a minha chame, não abra a não ser que bata como eu. Entendeu?
  — S-sim!

Em seu nervoso assentimento, Darl foi apenas parcialmente sincero. O soldado esteve dizendo-lhe tantas coisas nos últimos minutos que era difícil manter o foco.

Na realidade, o garoto não entendia qual era motivo de ter tanto cuidado, mas não ousava questionar. Nem mesmo tivera a chance de ver a cidade — local repleto de casas e pessoas, de acordo com Gundar — apesar de, tecnicamente, morar nela há uma lua inteira.

Talvez as pessoas apenas fossem hostis com membros de outras famílias. O soldado mencionara em algum momento que o rei Honir Nouwer com sua família, a Família Real, governavam a cidade de Nouwer. O que era permitido e proibido era ditado por eles.

Pareceu plausível a conclusão de que a cidade dividia-se em famílias. Talvez a de Gundar em especial mantivesse relações complicadas com as demais. E talvez por razões semelhantes os pais de Darl houvessem fugido para os bosques, onde viveram desde que o garoto tem memória.

Em um momento, a porta bateu quatro vezes. Em seguida, mais seis.

O garoto trocou olhares com o soldado que, estranhamente, não parecia surpreso. Gundar deveria ser a única pessoa a bater na porta dessa forma, mas ele estava diante de Darl neste exato momento.

O soldado virou-se e caminhou até a porta, durante o tempo em que as mesmas quatro batidas repetiram-se e, nas próximas seis, já estava parado diante da porta. Quando girou a maçaneta, uma esguia silhueta revelou-se, em contraste com a robusta forma do homem que abrira a porta.

  — Tá na hora, Gundar. —, suas casuais palavras ecoaram.

Seus olhos caminharam para o interior da casa, até pararem em Darl. Provavelmente por notar isso, Gundar virou-se também enquanto fazia um gesto para o novo visitante, convidando-o para dentro.

Quando o recém-chegado entrou, o dono da casa imediatamente fechou a porta. Após girar a chave, andou em direção ao confuso garoto.

  — Esse é Rhaffur. —, finalmente, Gundar apresentou o visitante. — Ele é um soldado também, e voltou pra cidade faz pouco tempo, então não teve a chance de aparecer antes.

Com excessão do porte físico, os soldados possuíam poucas diferenças. Tinham por volta da mesma idade, o mesmo cabelo curto e a mesma negra barba, além de exercerem a mesma profissão.

Por um momento, quase pareceram ser a mesma pessoa.

  — É um prazer, Darl. — Rhaffur disse.

Então, com uma simples expressão, mais uma diferença ficou clara — uma que fez ambos parecerem completamente diferentes: ele sorria.

Seus olhos pareciam cansados e havia algumas rugas por seu rosto mas, ainda assim, a curva que seus lábios faziam passava alguma forma de conforto já esquecido.

Era como um calor levemente nostálgico.

  — Basicamente —, Gundar adicionou. —, ele é a única pessoa de mim que você deve confiar.

E Darl queria mesmo confiar naquele homem.

Talvez fosse um pouco egoísta, já que fora Gundar a pessoa que lhe acolhera. Contudo, enquanto este era seguido por um frio e rígido ar, foi possível sentir simpatia por Rhaffur desde o primeiro momento.

  — Como já falei, vamos sair numa caçada pelos bosques. —, o robusto soldado continuou. — Voltamos essa tarde. Então só fique alerta até lá, e faça como te ensinei, se precisar.
  — Bem, hoje vai ter carne na janta. Até um tempo atrás isso era um luxo dos nobres. Acho que a gente tem que agradecer pelas fazendas não darem mais conta.

O comentário de Rhaffur veio com um dar de ombros e um pouco do que talvez pudesse ser considerado sarcasmo.

A resposta de Gundar, porém, foi um veloz olhar.

Apesar da dificuldade para entender as expressões de um homem sempre com o mesmo rosto, aquele aparentava ser um olhar reprovador.

Ao notar os olhos do amigo sobre si, a reação de Rhaffur foi arregalar os seus próprios. Sua boca abriu como se estivesse para dizer algo, mas se fechou logo em seguida. Ele desviou o olhar para o chão e coçou a cabeça. De alguma forma, parecia ter dito algo que não devia, mas Darl não tinha a mínima ideia de o que era.

  — Temos que ir. —, por fim, vieram as frias palavras do outro soldado.
  — Sim, sim.

Sem qualquer cerimônia, Gundar virou as costas e andou até a saída, seguido pelo amigo.

Enquanto passava pela porta novamente aberta, Rhaffur virou-se brevemente para trás e acenou para Darl. Antes do garoto ter qualquer chance de responder, retornou sua atenção ao caminho, e a porta logo foi fechada.

E o solitário silêncio sussurrou novamente.

Aquela porta, aberta e fechada várias vezes durante o dia, era tudo que separava Darl de um mundo nunca visto antes.

Ele vivera toda sua vida em um universo que se resumia a uma cabana e intermináveis árvores para onde quer que se olhasse. A curiosidade sempre estivera presente, mas o medo era maior.

Florestas são o lar de animais assustados e inofensivos, mas também de lobos, javalis, ursos e, em suas partes mais profundas, de criaturas de vários nomes e hostilidade em igual quantidade. Darl nunca ousara aventurar-se por tais perigos; limitava-se a deixar seus curiosos olhos perderem-se no horizonte verde.

Há um mês, entretanto, o mundo do garoto transformou-se em uma casa e um quintal de fundo. Seus olhos não podiam mais viajar pelo horizonte, pois encontravam apenas paredes e um de madeira.

Mas a porta a sua frente ainda podia ser aberta.

Se a maçaneta fosse girada e puxada só um pouco, uma fenda seria aberta. Através dela, um olho poderia espiar um novo mundo em plena segurança.

Ou talvez Gundar ainda estivesse no outro lado aguardando, pronto para lhe repreender pela arriscada curiosidade; mas o pensamento era ridículo.

Os soldados já deviam estar bem longe. Não haveria qualquer risco.

Com a consciência em harmonia, o garoto andou até a porta fechada. Seus passos sobre as tábuas no chão ecoavam na casa vazia, alguns seguidos pelo ranger das peças nas quais pisava.

Após suas pernas concluírem seu trabalho, era tempo de sua mão fazer sua parte.

Seus dedos envolveram a maçaneta. Fora tocada recentemente, e o verão ainda não havia acabado, mas seu metal estava frio.

A mão de Darl girou. Com ela, a maçaneta.

Um estalo foi ouvido claramente, como era comum. Repetidas vezes o mesmo som fora ouvido quando o soldado entrava e saía da casa, mas poder ouví-lo como produto de suas próprias ações pareceu completamente diferente.

Com o coração rápido como não batia há semanas, o garoto puxou a maçaneta que já não parecia tão fria ao toque.

Mas ela não se moveu.

Darl certificou-se várias vezes de que girou a maçaneta completamente, mas a porta ainda abria. Até mesmo tentou empurrá-la em vez de puxar, mas ainda não abria.

Ele apenas então compreendia que, na verdade, a porta estava trancada.

Diferente de sua antiga casa, cuja tranca era puxada para o lado e apenas pelo lado de dentro, uma fechadura pode ser aberta e fechada de ambos os lados, apenas com a necessidade de uma chave.

Frustrado consigo mesmo, por não ter considerado o detalhe antes, e com Gundar, por ter trancado a porta, Darl resignou-se. Seus ombros caíram com um suspiro, acompanhados por sua cabeça. Dela, também caiu sobre seus olhos uma franja ruiva não cortada há algum tempo.

Seu cabelo era da cor do sol do anoitecer, e da lareira que mantinha ele e sua família aquecidos durante as noites. Também era da mesma cor do cabelo de seu pai.

Darl evitava remoer o que fora deixado para trás, e tentava pensar que teve sorte em ser encontrado por Gundar. Mas sempre que olhava para seus caustrofóbicos arredores, questionava-se. Talvez tivesse sido sorte maior partir com seus pais para o próximo mundo. Assim não teria encontrado os lobos.

Nem visto o sangue em suas mãos.

Sempre fora curioso sobre o que havia no exterior. Na primeira mudança, contudo, apenas fora levado a um mundo menor e só não tão sufocante quanto suas memórias.

Apesar da cabana na qual vivia com seus pais ter sido menor, existia a opção de observar a floresta, caminhar ao redor da casa e, ocasionalmente, sair acompanhado para um pouco mais longe.

Quando pensava em coisas do tipo, lágrimas costumavam escorrer pelo rosto de Darl. E este momento não foi diferente.

Mas, a este ponto, o garoto já possuía formas de desviar sua mente de coisas do tipo. Uma delas consistia em morder a própria língua até que a dor gritasse mais alto que a angústia.

Novamente, funcionou.

Talvez o fato de sua língua permanecer latejante por alguns instantes pudesse tornar-se um empecilho quando falar fosse preciso, mas Darl raramente dizia alguma palavra fora as necessárias para concordar com as de Gundar.

Então um detalhe retorna à memória.

Darl vai até a mesa e pega uma cadeira. Leva-a até a porta e faz como instruído pelo soldado: inclina-a e, com a cadeira de costas para porta, deixa o encosto sob a maçaneta.

Com o todo o trabalho para o dia feito, pouco restava para se fazer.

O garoto caminhou em círculos pela sala de estar. Após contornar a mesa três vezes, seus olhos focaram-se em uma janela. Era a que ficava na parede aposta à porta, a mesma que levava para os fundos — e também única possível "rota de fuga".

Ainda estava fechada. Darl andou até ela e empurrou suas abas. Elas não se moveram, mas a razão logo ficou óbvia: estava trancada.

Já habituado de alguma forma com o dilema, o garoto puxou o pequeno pino que mantinha a janela fechada e empurrou suas abas novamente.

Um brilho cegante tomou conta de sua visão.

Darl progeteu os olhos com os braços por alguns instantes, até poder julgar-se adaptado à mudança de luz. Ainda era cedo, mas o sol brilhava forte no lado de fora.

A imagem que se formou foi a do já bem conhecido quintal dos fundos. Poucos passos adiante, além do poço, erguia-se um muro de peças justapostas de madeira que atiçava a curiosidade.

O garoto debruçou-se sobre o peitoril da janela pela qual já pulara várias vezes. Ainda era estranho pensar que usara a janela várias vezes para ir ao quintal cercado, enquanto jamais usara a porta.

A razão disso era simples: evitar usá-la.

Quanto mais pensava sobre, mais Darl concluía que o senso de segurança de Gundar cruzava a linha da paranoia. Mesmo assim, não ousava questionar os motivos do soldado.

Contudo, a curiosidade parecia falar mais alto ao passar de cada segundo.

Com o tempo a seu favor, Darl virou-se de volta para dentro e andou até a mesa. Pegou mais uma cadeira, arrastou-a até a janela e, com todo cuidado possível, ergueu-a. Após cruzar o vão da janela, lentamente pôs a cadeira no chão do outro lado.

Então ele mesmo pulou para o lado de fora e carregou a cadeira até o muro.

Talvez um adulto de pé não fosse alto o bastante para ver por cima do cercado. Darl, porém, com seus quase doze invernos de idade, mais a altura da cadeira, devia ser capaz.

Ele pôs um pé sobre a cadeira. Com uma mão apoiada no encosto do assento e outra no próprio muro, preparou-se para saltar.

Com a força em seu joelho flexionado, impulsionou o corpo para cima.

Por um instante, esforçou-se. Foi possível ver o topo do muro aproximar-se. Darl seria capaz de finalmente ver o que havia além deste pequeno mundo.

Poderia vislumbrar o que realmente era a cidade de Nouwer.

Junto com um estalo, veio o sentimento de leveza.

O topo do muro deu lugar a um céu azul.

Quando Darl deu-se conta do que acontecia com seu corpo, suas costas já se colidiam com o duro chão.

A dor veio apenas depois do susto.

Apesar de tudo, sua cabeça não atingira o chão com força, e o que mais incomodava eram suas costelas. Mais lágrimas acumularam-se em seus olhos mas, como a dor estava longe de ser delibitante, o garoto pôs-se sentado.

Enquanto limpava a areia de suas roupas, seus olhos encontraram uma cadeira caída. O pior nisso tudo, entretanto, levou um pouco mais de tempo para ser notado.

A cadeira tinha uma das pernas quebrada.

Por alguma razão, no momento em que Darl impulsionava seu corpo para cima, uma das pernas da cadeira partira-se.

Desta vez ele realmente fez algo que não deveria. Se Gundar não poderia reprimí-lo pela curiosidade, certamente iria pela cadeira quebrada.

O garoto aproximou-se do objeto e analisou melhor o dano.

Apesar de quebrada, a parte solta da peça ainda se mantinha ligada à cadeira por um estreito conjunto de fibras de madeira. Era como um tecido rasgado a ponto de se partir em dois.

Darl colocou a cadeira de volta de pé e pôs a parte rompida de sua perna de volta no lugar. Quando deixada assim, a cadeira ainda permanecia no lugar.

Aliviado até certo ponto, concluiu que o melhor a se fazer quanto ao incidente seria fingir que nunca sequer acontecera.

O garoto retornou a cadeira ao seu lugar à mesa, dentro da casa. O que viria a ser dela ficou nas mãos do destino.

Após as consequências dos seus últimos impulsos curiosos, Darl optou por uma atitude mais passiva para o resto do dia.

...

À tarde, sentou-se diante da lareira. Estava apagada, como de costume durante os dias. Ainda assim, era um local que transmitia um certo conforto a seu coração agitado.

Era um pouco irônico, considerando que sua mente sempre viajava grandes distâncias, enquanto a lareira trazia um horizonte que acabava logo a sua frente.

E talvez ainda mais irônico fosse o fato de a lareira ser um local onde dançam as chamas que queimam a lenha — destino pouco diferente de sua antiga casa.

Talvez a lareira devesse trazer as últimas memórias de seu lar, que ruíra em chamas em uma noite um mês atrás. Em vez disso, parecia trazer algum tipo de serenidade.

Esteve apagada desde cedo, e a lenha semiqueimada já devia estar completamente fria. Mas era como se algum tipo de calor emanasse dela.

Um calor convidativo.

Quatro batidas vieram da porta.

Os ouvidos de Darl puxaram-lhe de volta à lucidez. Em seguida, mais seis batidas foram ouvidas.

Não havia dúvida — era Gundar.

O garoto levantou-se e andou apressadamente até a porta. Enquanto retirava a cadeira que deixara apoiada sob a maçaneta, ouviu mais quatro batidas.

Talvez fosse apenas paranoia, uma cautela impensada, mas seu corpo cessou seus movimentos. Ele queria ouvir as próximas seis batidas, para ter completa certeza de que era a pessoa certa na porta.

E as seis batidas vieram novamente.

Darl retirou a cadeira do lugar e andou para trás. Talvez Gundar tivesse ouvido seus passos ou o som que os pés da cadeira fizeram ao tocar de volta o chão à mesa, porque a porta logo foi aberta.

O familiar rosto do soldado, rígido como uma rocha, entrou na casa. Em sua mão, havia uma sacola. Não foi necessário muito raciocínio para concluir que continha os espólios da caçada.

Gundar fechou a porta atrás de si, trancou-a e deixou a chave na fechadura.

  — Hm...? —, após se virar, pareceu ter deparado-se com algo fora do comum. — Acendeu a lareira sozinho?
  — Hã? Mas eu nã...

Quando os ouvidos de Darl notaram um estranho crepitar, e sua pele um distinguível calor, interrompeu sua confusa resposta. Virou-se para a lareira, e assim confirmou um fato difícil de se crer.

Como Gundar havia dito, a lareira estava acesa. Chamas dançavam graciosamente sobre a lenha, como se houvesse absolutamente nada fora do comum.

  — A caçada foi boa hoje. —, o soldado pôs a pesada sacola sobre a mesa. — A gente vai dividir essa carne pelos próximos dias.

Sem puxar a cadeira antes, provavelmente por já estar um pouco deslocada, Gundar sentou-se à mesa.

Até mesmo Darl já havia esquecido, mas aquela era a cadeira envolvida no incidente mais cedo, e estava com uma perna quebrada.

...

  — Nouwer fica um tanto no meio do nada, e é nada se for comparar com os reinos maiores por perto. Só que, na verdade, costumava ser uma posição bem importante na Guerra dos Dois Impérios.

Desde a primeira caçada com Gundar, Rhaffur passara a frequentar sua casa com certa frequência. Nas ocasiões em que o primeiro precisava passar um longo tempo fora de casa, várias vezes fora deixada com o amigo o dever de permanecer na casa com Darl.

Todas as vezes que Rhaffur vinha, compartilhava ao menos uma história com o garoto. Outra diferença em relação ao amigo que se tornou evidente em pouco tempo foi seu senso de humor.

Darl já havia esquecido-se do fato de que era possível rir de uma piada.

O outono já havia chegado, e com ele a melancolia das folhas amareladas que caíam pouco a pouco na espera do iminente inverno. Contudo, quando Rhaffur estava presente, tal sentimento podia ser esquecido.

  — Dois Impérios? —, questionou Darl, com a sobrancelha levantada. Estava diante de mais um termo que jamais ouvira.
  — Não conhece eles? —, o soldado parecia surpreso. — Então ouve bem. O Oeste hoje é dividido em muitos reinos. Só Yahlov sabe quantos! Mas antes só tinham dois: o de Khanlof, no meio do mundo, onde a gente tá, e o de Gundord, junto da costa.
  — "Costa"?
  — Só ouve! Esses dois impérios entraram em guerra em um momento. E eu sei que você quer perguntar "por quê?", e eu respondo: "porque todo monarca quer as terras do vizinho". E quem venceu? Khanlof, que era mais forte. Mas a vitória não durou muito tempo, porque logo depois o império se desfez. Por quê? Porque os nobres também querem a terra um do outro pra si.
  — Hã...?
  — O tempo dos impérios acabou, mas Nouwer, que começou só como uma fortaleza numa encruzilhada e virou uma cidade na época do Khanlof XIV, foi tomada por um nobre khanlofiano, que virou rei. Foi o bisavô do nosso rei atual, Honir.

Talvez era fato que Darl era frequentemente incapaz de acompanhar as histórias de Rhaffur, mas isso não lhe incomodava muito. O energético soldado era capaz de ocupar sua mente, e isso era tudo que podia desejar.

  — Aliás, já te contei por que Nouwer tem esse nome?
  — Hmm...? Acho que não.
  — É meio ridículo, mas ouve só!

...

Ao fim daquele dia, Gundar retornou.

Ele não entrou na casa de imediato. Em vez disso, parado à porta, fez um gesto a Rhaffur. Quando o olhar do soldado sentado diante de Darl retornou ao garoto, já não era o mesmo.

  — Parece que tenho que ir. —, sua boca sorriu enquanto falava, mas seu sorriso não ia mais longe que isso. — Até algum outro dia!

Rhaffur levantou-se e andou até Gundar. Em silêncio, como se pudessem entender um ao outro sem o uso de palavras, ambos os soldados foram para o lado de fora. A porta logo se fechou atrás deles.

Deviam estar conversando sobre algo importante, mas Darl não conseguia ouvir suas vozes de onde estava. Talvez pudesse se tentasse aproximar-se da porta, mas decidiu não tentar satisfazer sua curiosidade outra vez.

Após um tempo longo o bastante para um leve sentimento de preocupação levantar-se, a porta foi aberta novamente. Apenas Gundar entrou, e aparentava estar mais mal-humorado que o normal.

Sem qualquer palavra, seguiu para o pequeno armário ao lado da lareira. Seu silêncio não era exatamente incomum, mas algo parecia agravar a tensão.

Abriu uma gaveta do armário e dela retirou uma tesoura e um pedaço cinzento do que já foi um branco tecido de algodão. Andou até lareira, diante da qual se ajoelhou e pôs os objetos no chão ao lado, junto a outros que já estavam ali.

Uniu as palmas das mãos e fechou os olhos, em prece.

Darl, que apenas observava, esticou o pescoço para ter certeza que havia palha suficiente para começar o fogo.

Várias vezes Gundar, já ajoelhado, notara que a palha havia acabado no dia anterior, e pedira ao garoto trazer um punhado a ele. Desta vez, contudo, havia sobras suficientes.

Após abrir os olhos, o soldado recolheu o pedaço escurecido do tecido-carvão, deixou-o sobre a base de pedras da lareira e pegou a tesoura.

Com o polegar, fez medidas rápidas porém provavelmente precisas, dada sua experiência, e cortou o tecido cinzento.

O tecido, uma vez branco, havia sido previamente carbonizado dentro de um recipiente de barro com um furo no fundo e um na tampa posto sobre as chamas. Desta forma, o algodão tornava-se escuro, e também muito inflamável.

Tal processo era repetido a cada exatos doze dias.

Com o pedaço do tecido inflamável cortado, Gundar recolheu dois objetos que sempre estavam à lareira: uma pederneira e uma peça de aço curvada e dobrada sobre si.

Sobre o pedaço de tecido-carvão, Gundar chocou a peça de aço e a pedra. Faíscas voaram. Foi necessário repetir o atrito apenas algumas vezes até as faíscas iniciarem pequenas chamas na superfície do pano cinzento.

Em seguida, o soldado adicionou palha às chamas aos poucos. Quando o brilho vermelho que erradiava do punhado tornou-se suficientemente grande, e a fumaça escura que dele brotava espessa, transferiu a palha para o centro da lareira.

Enquanto o fogo crescia, mais palha era acrescentada. Então foi a vez de adicionar a primeira camada de lenha, sobre a qual foi empilhada a segunda, e a terceira, com peças progressivamente mais finas e, por fim, uma camada de gravetos.

Com a lareira pronta e acesa, Gundar juntou as mãos e fechou os olhos outra vez.

Falta de lenha nunca seria um problema — afinal, Nouwer era uma cidade cercada de grandes bosques. Ainda assim, a lareira não queimava o dia inteiro. Ela era acesa todas as tardes e mantida até o momento que iam dormir. Pela manhã, o fogo já havia estinguido-se, e permanecia assim até a tarde.

Fazer fogo era uma atividade ritualística.

A razão disso Darl ouvira de Rhaffur.

Os homens vieram dos céus, criados da água e das núvens pelo Pai, cujo nome fora esquecido há muito tempo.

Nos primórdios da humanidade, os filhos do Pai ostentavam asas. Era permitido-lhes os céus, mas apenas durante o dia, pois sua vitalidade vinha do sol e, à noite, suas forças deixavam-lhes e podiam apenas adormecer no perigoso e frio solo.

Os homens não aceitaram tais condições, e pediram a seu Pai pelo sol eterno. Como resposta, receberam um par de pedras.

Incapazes de compreender seu presente, fizeram seu pedido outra vez no dia seguinte, que foi novamente recusado. Após haverem repetido o mesmo pedido doze vezes, em doze dias, eventualmente despertaram a fúria do Pai sobre seus filhos.

O resultado disso foi a remoção de suas asas, e a condenação ao solo dia e noite.

Diante da situação deplorável dos homens, o deus Yahlov acolheu-lhes.

Yahlov, o Padastro, fez um acordo com o Pai: ele ensinaria aos homens o Caminho da Virtude. Se os honens fossem bem-sucedidos em sua aprendizagem, teriam suas asas e seu lugar nos céus devolvidos.

Assim, Yahlov deu-lhes mãos para que trabalhassem e construíssem seu caminho à virtude e aos céus.

O primeiro uso dado a suas mãos foi, com as pedras recebidas pelo Pai, fazer fogo. Com ele, os homens poderiam proteger-se dos perigos do solo, além de se aquecer durante as noites.

Desde então, sempre que o sol esteve baixo no horizonte, lareiras eram acesas.

Após alguns instantes de joelhos, Gundar levantou-se. Contudo, não se virou. Apenas continuou de frente para o fogo, em silêncio.

Dificilmente Darl reunia coragem para dizer algo a Gundar, e mais raramente ainda arriscou a questioná-lo a respeito de ago.

Talvez por Rhaffur ter partido há pouco tempo, e ainda estar com um pouco do otimismo passado por ele, Darl conseguiu levantar a voz.

  — Gundar... —, ele timidamente chamou.

Ainda assim, o soldado não respondeu. No mesmo instante, o garoto arrependeu-se de sua escolha. Porém, no momento, o silêncio parecia ainda mais sufocador que a necessidade de falar.

  — Aconteceu alguma coi...
  — Rhaffur e eu partiremos em alguns dias. Não vamos estar nas linhas de frente, pelo menos, mas precisam de mais mantimentos e guardas para o acampamento.
  — Ah...

Apesar do quão direto fora, Gundar parecia, de alguma forma, hesitante. Era como se houvesse algo mais a ser dito, e mais problemático. Mas sua partida, de toda forma, já seria um grande problema.

O garoto questionou-se sobre a situação que ficaria após a partida de ambos os soldados. Afinal, sempre que Gundar partia por muito tempo, Rhaffur ficava com ele. Mas Darl não precisou transformar seus pensamentos em palavras.

  — Você vai junto. —, disse o soldado barbudo, que finalmente se virou para encarar o ouvinte. — Agora presta muita atenção no que vou dizer. Vou te levar amanhã e te apresentar ao líder da expedição. Isso significa que você vai andar pela cidade. Então fique do meu lado e olhe sempre pra frente.

Darl apenas assentiu enquanto Gundar continuava.

  - A viagem vai ser semana que vem. Durante ela, fique sempre onde eu possa ver, mas não olhando para mim. Você vai entre os escudeiros, no meio da formação, com as carroças. Tentarei ficar atrás, e Rhaffur também. Duvido que alguém fale contigo mas, se acontecer, apenas tente não criar confusão. Entendeu tudo até agora?

O garoto repetiu o gesto com a cabeça em resposta.

  - Ótimo. No acampamento, você vai ficar na minha tenda, onde só cabem duas pessoas. Você vai fazer as atividades que te forem assignadas e voltar pra tenda assim que tiver a chance. Sempre com olhos atrás da cabeça. Vai ser desagradável, mas considere isso um pequeno preço a pagar para continuar vivo.

Eram tantos detalhes para se considerar. Darl perguntava-se também sobre a necessidade de ser cauteloso na presença de outras pessoas. No início ele achava apenas desnecessário mas, agora que sabia que logo estaria na presença de várias delas, queria manter distância de toda forma.

Pensando bem, foi isso que ele fizera por toda sua vida, e continuaria a fazer com sua família. Não se lembrava da última vez que questionara seus pais quanto a isso pois, em algum ponto, apenas aceitara seu destino. Os bosques eram sua vida, a cabana era seu lar. Não havia outra opção.

Contudo, de uma hora para outra, passou a ser lembrado constantemente de que corria perigo, de que havia um mundo coberto por pessoas perigosas além daquelas paredes.

Os sentimentos de curiosidade extinguiram-se como a chama de uma lareira acesa pela noite e, em um piscar de olhos, apagada pela manhã. Eles derem lugar a pavor. Darl queria apenas se esconder em algum canto da casa.

Mas qual era a razão, afinal, para tanto cuidado?

O modo como Gundar falava fazia parecer completamente óbvio, mas nada vinha à cabeça do garoto. Ele devia saber? Era porque ele não nascera na cidade? Mas seus pais eram de alguma cidade antes de fugirem. Havia alguma razão que ele nunca soube.

Perdera a chance de questionar os pais quanto a isso, e a expressão do soldado, mais o fato de raramente terem tido uma conversa, criavam uma situação na qual fazer uma pergunta dessas era difícil.

Mas Rhaffur ainda era uma opção — a única opção.

Era preciso apenas esperar por uma chance. A próxima visita, se houvesse uma antes da partida, ou durante a viagem em si, talvez. Mas ele precisava saber.

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